Num momento em que estudávamos e refletíamos sobre o compromisso social que o psicólogo tem e as competências necessárias ao seu trabalho, me deparo novamente com a entrevista de Debora Noal, psicóloga que se preparava para a 10ª missão pelo Médicos sem Fronteiras.
Compartilho aqui dois pedaços que me tocaram de forma especial:
É terrível e lindo ao mesmo tempo. Como você sai de uma missão como essa? Como você vive depois de ter vivido isso?
Debora – Eu saí arrasada. Caramba, não fiz nada por essas pessoas. Tinha muita coisa que precisava ter sido feita. Elas precisam de paz. Não existe saúde, não existe felicidade num lugar onde você não tem paz, o princípio básico da humanidade. Na época eu trabalhava com a seção belga. Então, cheguei à Bélgica muito mal. Fui fazer meu relatório e contei sobre o número de pessoas que estavam sendo violentadas. Disse que a gente precisava fazer alguma coisa. E falei: “Eu estou mal porque não me importo de passar a minha vida inteira atendendo essas pessoas em forte sofrimento, mas eu me importo de saber que amanhã, depois de amanhã, e depois e depois e depois elas vão continuar sofrendo esse mesmo tipo de violência se isso não parar. Agora a primeira necessidade é uma equipe de paz. Como fazer isso?”.
E como fazer?
Debora – Nós temos jornalistas dentro da organização. Temos um compromisso com a denúncia quando existe qualquer tipo de ferimento aos Direitos Humanos. Me encaminharam para o serviço de comunicação e falaram: “A gente vai fazer alguma coisa”. Eu saí de lá, e os jornalistas foram. E fizeram reportagens e documentários. Divulgaram. Um ano e pouco depois, em 2010, eu voltei para lá. Normalmente depois de um estupro, no Congo, uma mulher não pode mais casar. Não tem mais o direito de casar porque ela não é mais virgem e porque ela já teve a sua primeira experiência. Então ela é alguém que está “suja”. E um dos trabalhos era mostrar para os homens e a comunidade que não, ela não estava suja. E que era preciso rever algumas estruturas da cultura. E, quando voltei, eu perguntei: “Onde está o meu grupo?”. E a resposta foi: “Todas casaram”. E elas vinham à minha sala de consulta mostrar seus bebezinhos, apresentar o marido, os sogros. Vinham com a família inteira. Eu falei: “Gente, não acredito!”.
Debora – Eu saí arrasada. Caramba, não fiz nada por essas pessoas. Tinha muita coisa que precisava ter sido feita. Elas precisam de paz. Não existe saúde, não existe felicidade num lugar onde você não tem paz, o princípio básico da humanidade. Na época eu trabalhava com a seção belga. Então, cheguei à Bélgica muito mal. Fui fazer meu relatório e contei sobre o número de pessoas que estavam sendo violentadas. Disse que a gente precisava fazer alguma coisa. E falei: “Eu estou mal porque não me importo de passar a minha vida inteira atendendo essas pessoas em forte sofrimento, mas eu me importo de saber que amanhã, depois de amanhã, e depois e depois e depois elas vão continuar sofrendo esse mesmo tipo de violência se isso não parar. Agora a primeira necessidade é uma equipe de paz. Como fazer isso?”.
E como fazer?
Debora – Nós temos jornalistas dentro da organização. Temos um compromisso com a denúncia quando existe qualquer tipo de ferimento aos Direitos Humanos. Me encaminharam para o serviço de comunicação e falaram: “A gente vai fazer alguma coisa”. Eu saí de lá, e os jornalistas foram. E fizeram reportagens e documentários. Divulgaram. Um ano e pouco depois, em 2010, eu voltei para lá. Normalmente depois de um estupro, no Congo, uma mulher não pode mais casar. Não tem mais o direito de casar porque ela não é mais virgem e porque ela já teve a sua primeira experiência. Então ela é alguém que está “suja”. E um dos trabalhos era mostrar para os homens e a comunidade que não, ela não estava suja. E que era preciso rever algumas estruturas da cultura. E, quando voltei, eu perguntei: “Onde está o meu grupo?”. E a resposta foi: “Todas casaram”. E elas vinham à minha sala de consulta mostrar seus bebezinhos, apresentar o marido, os sogros. Vinham com a família inteira. Eu falei: “Gente, não acredito!”.
-----
Como é para você esse contato com o mal humano? Esses homens que queimam, mutilam, estupram e matam sem sequer conhecer. Nem mesmo é pessoal. Como você lida com isso?
Debora – Eu sempre acho que tudo tem uma razão, um significado. Por mais que a gente não entenda. Eu imagino que mesmo essas pessoas têm dentro da cabeça delas uma razão. Estou entrando no meu terceiro ano de MSF e ainda não consegui entender essa estrutura de maldade. Se me falarem: “Você precisa fazer um atendimento de uma pessoa do LRA”. Eu vou fazer. E vou tentar entender com ele o que está acontecendo e como se estrutura isso. Eu até brinquei uma vez com meu chefe. Eu falei: “Me deixa fazer o atendimento deles. Eu preciso entender o que está acontecendo”. Não consigo entender como alguém consegue fazer isso com uma menina de 11, 12, 13 anos. Ainda para mim é incompreensível. Mas eu gostaria de entender. Eu sempre acho que tem, sim, uma razão, que tem uma história atrás disso, e que talvez isso explique. Que não justifica, não justifica. Você pode me contar 100 mil histórias. Eu acho que isso explica, sim, mas não justifica. Mas... ok. O meu trabalho é este: atender as pessoas que ali chegam. Não importa de que lado que elas vêm, não importa que tipo de acontecimento se passa na vida delas ou se passou. O meu trabalho é aliviar o sofrimento humano, seja ele de onde venha, seja ele a cor que tenha. E dá para fazer isso. É a razão de eu continuar. Porque se eu achasse que não dava para diminuir o sofrimento, que não dava para ajudar as pessoas a escolherem novas estratégias de felicidade para a vida, talvez eu não estaria nesse lugar. De todos essas nove missões, eu não me lembro de alguém dizer: “Eu não encontrei uma razão para viver”. Muitas pessoas, principalmente no Haiti, diziam: “Eu não quero mais viver”. Na África, já é mais difícil você encontrar essa fala. Eles dizem: “Eu não tenho nenhuma razão para viver”. Mas estão lá, com aquele olhar do tipo: “Mas me ajuda a encontrar?”. Me ajuda a fazer a metamorfose desse sofrimento em vida mesmo, em felicidade? E às vezes a felicidade pode ser um grupo de dança, pode ser uma caminhada coletiva em algum lugar, pode ser um abraço... Como uma mulher de 70 anos me disse uma vez: “Nunca ninguém me abraçou”. Ela tinha sido estuprada e seu corpo era todo arqueado, enrijecido. Em cada lugar o estupro tem um significado diferente e, para aquela etnia, violentar uma mulher mais velha conferia poder ao estuprador. Então eu a abracei. O afeto pode, sim, fazer uma grande diferença. Eu não vou mudar o mundo, com toda certeza, mas eu posso mudar o mundo de uma pessoa durante algum tempo que pode ser uma hora, duas horas, 24 horas. Tá bom, sabe? Se todo mundo tiver uma hora, ao menos, de intensa felicidade, um sentimento bom de acolhimento, tá bom. É suficiente. Se em 70 anos ela nunca recebeu um abraço, por que eu não posso fazer uma grande diferença com um abraço, com um toque?
-----
São só duas partezinhas aqui, mas o depoimento inteiro dela é belíssimo, assutador e extremamente motivador! Enfim, para quem tiver um tempinho vale muito a pena conferir a entrevista inteira. O link para quem quiser é este: Minhas Raízes São Aéreas.
Educar é impregnar de sentido o que fazemos a cada instante! -
Paulo Freire